02/02/2016

Ciclos financeiros e a crise brasileira atual

A importância de se analisar mais cuidadosamente o chamado "ciclo financeiro" nos países

Desde a eclosão da grande crise financeira de 2008/09 - cujos efeitos deletérios sobre a economia global ainda estão bem longe de serem superados, ainda que a fase aguda tenha ficado para trás -, o BIS vem enfatizando a importância de se analisar mais cuidadosamente o chamado "ciclo financeiro" nos países.

Em geral, boa parte da literatura acadêmica relacionada à política monetária - assim como as ações dos policymakers mundo afora - dá ênfase ao chamado "ciclo de negócios", que tem uma duração aproximada de três anos. Nesses ciclos mais curtos, as variáveis com maior oscilação costumam ser o crescimento do PIB e a inflação.

Já os ciclos financeiros podem ter uma duração bem mais elevada, tipicamente em torno de uma década, e são caracterizados por aumentos relevantes e sistemáticos do crédito ao setor privado não-financeiro e dos preços dos ativos (sobretudo imóveis) - tendo, como contrapartida, elevações expressivas da alavancagem de famílias e empresas.

Estudos recentes vêm mostrando que os ciclos financeiros podem ter efeitos relativamente duradouros sobre as economias, não somente nos períodos de "boom", mas também após o estouro ("bust"). Dentre outras coisas, nos "booms" muitos investimentos relativamente ineficientes acabam sendo realizados; a mesma coisa acontece com o fator de produção trabalho, direcionado para setores menos produtivos, e o resultado líquido dessa má alocação de capital e trabalho acaba sendo uma desaceleração dos ganhos de produtividade.

Tentativa atabalhoada da política econômica de "esticar a corda" em relação a um quadro de desaceleração
Ao longo do ciclo financeiro, as famílias usualmente reduzem sua taxa de poupança e se endividam em excesso para adquirir bens duráveis e imóveis, confiantes de que sua renda e patrimônio seguirão crescendo ad eternum. Por conta disso, o déficit externo acaba se elevando bastante ao longo dos "booms".

Mas, um belo dia, esse ciclo chega ao fim - seja por conta de ações de política econômica, por choques exógenos desfavoráveis (nos termos de troca, por exemplo) ou ainda por um esgotamento endógeno do próprio ciclo financeiro. Nessa linha, um Working Paper recente, "Household debt and business cycle worldwide" (NBER), apontou que elevações relevantes do endividamento das famílias, em proporção do PIB, correspondem a um forte previsor de desacelerações do crescimento econômico no médio prazo.

O término desses ciclos financeiros pode ser pouco ou muito traumático, a depender da duração do "boom", da magnitude do aumento da alavancagem do setor privado e da higidez do sistema financeiro. Em geral, a fase de "bust" está associada a desacelerações relevantes do crescimento (ou mesmo a recessões em um primeiro momento) e costuma levar em torno de 3 a 5 anos para que um novo "boom" tenha início. Entre os "booms", observa-se uma desalavancagem do setor privado e um aumento do endividamento público (seja por conta do impacto negativo da desaceleração do crescimento econômico sobre os resultados fiscais, seja pela necessidade de socorrer o sistema financeiro ou mesmo algumas empresas), além de queda real dos preços dos ativos.

Não é muito difícil encaixar o quadro brasileiro nesse roteiro, levando em conta os últimos 10-15 anos. Tivemos nosso "boom" entre meados de 2003 e 2011/12, alimentado por inovações no mercado de crédito (como o consignado e a alienação fiduciária para imóveis), pela melhora expressiva de nossos termos de troca (entre 2006 e 2011), pela forte expansão global (entre 2004 e 2007), pelo elevado otimismo gerado pela descoberta de reservas de petróleo no pré-sal (em 2007), pelo "sudden flood" de capitais externos em direção aos emergentes (entre 2007 e 2012) e pela enxurrada de medidas anticíclicas adotadas pelo governo brasileiro entre 2009 e 2013 para combater os efeitos da recessão "importada" (medidas essas que também foram calibradas tendo em vista as eleições presidenciais de 2010 e 2014).

O estouro começou a acontecer com a adoção de medidas macroprudenciais pelo BC para controlar a expansão explosiva do crédito (final de 2010), seguida pela forte queda dos termos de troca de 2012 em diante (que é a mais longa e intensa desde 1980), pelo "sudden stop" de capitais externos de meados de 2013 em diante (deflagrado pelas sinalizações de normalização da política monetária nos EUA), pelos efeitos de choques de oferta desfavoráveis na área hídrico-energética (2013 a 2015) e com o esgotamento das medidas anticíclicas, as quais acabaram gestando uma crise fiscal que potencializou os efeitos negativos apontados acima, na medida em que sua superação está evoluindo em ritmo bastante aquém do desejável em função da reação bastante lenta e insuficiente do sistema político (Lava-Jato?).

O corolário de tudo o que foi apontado acima é que nem toda a conta da crise atual pode ser creditada na fatura da chamada Nova Matriz Econômica - que, a meu ver, foi uma tentativa, bastante atabalhoada, da política econômica de "esticar a corda" em relação a um quadro, contratado desde 2012/13, de desaceleração relevante de nosso crescimento em relação à média da década anterior. Não custa lembrar que, em maior ou menor grau, essa é uma situação que vem sendo encarada por boa parte das economias emergentes, que tiveram em 2015 seu pior resultado em quase duas décadas. Algumas dessas economias estão enfrentando melhor essa situação mais adversa do que outras, seja porque não esticaram tanto a corda, seja porque se prepararam melhor, economica e institucionalmente, para essa possibilidade ou ainda porque estão em estágios menos avançados de seus ciclos financeiros.

A boa notícia é que o processo de desalavancagem do setor privado brasileiro já teve início em meados do ano passado, como aponta a nova base de dados do BIS com esses dados para diversos países. Como o endividamento total brasileiro (dívidas privada e pública) ainda é baixo comparativamente a outros países, em especial no setor privado, um novo "boom" pode emergir mais ao final desta década. A data de início e a duração desse novo ciclo, contudo, está condicionado em grande medida ao ritmo de encaminhamento da questão fiscal estrutural, em especial a Previdência.

(Bráulio Borges - Valor Online)

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